Mensagem assustadora. Silêncio ensurdecedor!
Recebi uma mensagem pelo WhatsApp e fiz a mais tensa caminhada pela orla da praia de toda a minha vida. O antissemitismo cresce no mundo. E poucos parecem se importar com isso.
Por Airton Gontow
Aconteceu poucos dias depois que publiquei minha coluna criticando o governo Lula por posições, frases e atitudes antissemitas. Eu já esperava reações ruidosas e raivosas, como nas vezes em que critiquei Bolsonaro. De fato aconteceram, mas desta vez chegou também uma mensagem bem diferente.
Eu estava começando uma caminhada na orla de Santos, quando vi entrar no WhatsApp uma mensagem, com desenho, texto e voz. Não conhecia o “remetente”. Vi que estava escrito: “Arraial do Islã”.
Como estava na rua, achei que, mesmo em Santos, não seria prudente caminhar com o celular junto ao ouvido. Guardei o aparelho no bolso e segui, tenso, imaginando o teor da mensagem.
A voz expressaria indignação pelo meu apoio ao direito de Israel existir. Talvez me xingasse. Ou ameaçasse. Pior ainda: ameaçasse a minha família.
– Esse nome remete à fogueira! Como conseguiram o número do meu WhatsApp?
O coração bateu mais forte. Não é bom caminhar neste estado.
Procurei acalmar-me. Talvez fosse apenas um contraponto, dito com respeito. Exaltado ou não, o irado interlocutor (ou irada interlocutora) contestaria meus dados ou opiniões e apontaria outros lados dos fatos.
Nem sempre é agradável, mas é sempre bom e importante receber críticas e ouvir opiniões, até mesmo porque geralmente a verdade é um conjunto de várias verdades.
Mais ou menos na altura do canal 5 vi do outro lado da rua uma feira junina. Será que era ali o Arraial do Islã?
– Se a mensagem trouxe um convite, claro que vou – suspirei esperançoso.
Provavelmente queiram mostrar-me que os muçulmanos são como qualquer outra pessoa do planeta. Que a ampla maioria deseja se divertir, estar em família ou com amigos. Nada como estar juntos para desarmar conceitos e preconceitos. Especialmente neste nosso país que recebeu tão bem seus imigrantes e onde as comunidades judaica e árabe têm histórico de ótima convivência.
Acho que essa turma do Arraial do Islã nem imagina que no prédio em que eu morava, em Haifa, viviam duas famílias de árabes muçulmanos que estudavam na Universidade de Haifa, nem que boa parte dos médicos que nos (Maria e eu) atendiam eram árabes muçulmanos e árabes cristãos, já que cerca de 20% dos médicos israelenses são árabes.
Lembrei-me com saudades de um jovem árabe que conhecemos em um kibutz onde trabalhamos, próximo a Hadera, na região centro-norte do país. Quando soube que vivíamos na mesma cidade, Harish, que fica ali pertinho, se ofereceu para nos levar diariamente para o trabalho.
Era um sujeito alto, forte, caladão, generoso e nobre. Tão nobre que quando nos oferecemos para pagar parte da gasolina, até mesmo porque economizaríamos o ônibus que nos levava ao trabalho, ele se ofendeu.
– Se vocês não fossem comigo, eu gastaria os mesmos litros de gasolina. É um absurdo vocês pagarem!
Durante todo o percurso os pensamentos caminharam pela minha cabeça. Ora os mais terríveis, ora os edificantes.
Vivemos tempos de radicalismo, ódio, ressentimentos, demonização do outro. As chances de ser algo ruim eram grandes. E tal sensação perdurou a maioria do tempo. Foi uma das piores e mais tensas caminhadas à beira da praia em toda a minha vida.
Voltei para casa, mas não abri o WhatsApp imediatamente. Preferi tomar um banho, para me acalmar. Confesso aqui que fui ecologicamente incorreto. Fiquei mais tempo debaixo do chuveiro do que o planeta merece. Mas precisava daquela água caindo sobre meus ombros, daquela água que, mesmo bem quente, esfriava a minha cabeça, que fervia.
Após o banho, vesti o roupão, abri uma garrafa de água do coco e sentei-me para ouvir.
Procurei o Arraial do Islã.
Não aparecia na lista.
Terá sido ilusão?
É que tinham entrado no literalmente meio do caminho muitas outras mensagens.
O Arraial do Islã estava mais para baixo.
Observei antes de escutar. A mensagem de voz tinha um minuto e 42 segundos.
– Aqui é do Isla Residence, empreendimento que você e sua esposa visitaram recentemente, aqui em Santos. Nossa construção avançou e queremos convidar vocês dois para estarem com a gente no próximo sábado. Teremos comes e bebes juninos, além de boa música. O senhor e a senhora Maria são convidados para nosso Arraial do Isla. E, claro, se vocês quiserem poderão visitar os apartamentos decorados…
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Dias atrás, Maria e eu estávamos no Sesc, em Santos, para almoçar em seu excelente refeitório. Por um acaso, ao sentarmos vimos que na mesa ao lado estava um simpático morador de Santos que conhecemos algumas semanas antes e que sempre nos pergunta sobre nossa adaptação à cidade e também detalhes sobre nossa estadia em Israel. À sua frente, havia uma mulher.
Ele foi simpático e nos apresentou.
– Vocês já conhecem a minha esposa?
Maria e eu a cumprimentamos efusivamente. Até lembramos que ele disse que era casado e que provavelmente algum dia sairíamos juntos. “Os dois casais!”
Mas ela nem nos olhou e, pelo contrário, fez uma expressão hostil e continuou comendo, com os olhos em direção ao prato de comida.
Nosso quase novo amigo percebeu quando Maria olhou novamente, de soslaio, para ela, com um mix de estranheza e espanto.
Vimos claramente que ficou constrangido.
Um segundo depois se levantaram. Ela na frente e ele logo depois.
Talvez não fosse com a gente. Quem sabe tenham brigado minutos antes da nossa chegada!
Mas nos olhamos tristes e, com incrível sincronia, exclamamos um para o outro, ao mesmo tempo:
– Antissemita!
Depois disso passamos pelo casal mais duas ou três vezes. A atitude dela foi sempre a mesma.
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Há uma piada clássica sobre um jovem judeu russo, gago e apaixonado por futebol, que no tempo do regime comunista se candidata ao cargo de narrador esportivo em uma rádio estatal.
Ele faz o teste:
– Vaiavai com a boboboboboola Ivavavanooov, passassou papapaparara Meetreeeveveli, queee chututotou e gogogolll.
Na semana seguinte, ele recebe uma carta da rádio e lê silenciosamente a notícia:
– Lamentamos informar que o senhor não foi aprovado no teste.
Ele fecha a carta, sai andando pela sala e exclama em voz alta, para ele mesmo:
– Antissemimitas. Tutudo porqueque eeeeu sou jujudeudeu!
Apesar de judeu e gago (fiz fonoaudiologia desde a infância) e de detestar piadas homofóbicas, racistas e preconceituosas em geral, acho essa história ótima e emblemática.
Obviamente que devemos ter cuidado em não achar que toda crítica a Israel é antissemitismo; que nem toda frase que critica uma liderança feminina é fruto de machismo e que nem toda não contratação de um funcionário negro ou homossexual por uma empresa revela racismo ou homofobia. Mas é também um absurdo não perceber que muitas vezes há total relação entre esses fatos e o preconceito.
Conto a você, leitor, leitora, que nós, judeus estamos horrorizados com o recrudescimento do antissemitismo no mundo inteiro. É tudo muito intimidador, confuso e nem sempre é fácil discernir o que é de fato preconceito.
A defesa da causa palestina e a indignação com o que acontece em Gaza não poderia de forma alguma passar por cima de princípios básicos para qualquer humanista que se preze.
É indecente e preconceituoso cobrar de Israel e dos judeus comportamentos que não são cobrados de outros países e povos, assim como negar o direito de um único movimento de autodeterminação de um povo em todo o mundo: o judaico.
Condenar, com razão, o governo israelense, mas ignorar ou justificar o que faz o Hamas, em nada contribui para a conquista da paz e a busca do melhor e mais justa das soluções: dois estados para dois povos.
Muitas vezes nós judeus ouvimos de nossos avós e outros sobreviventes do Holocausto que tão grave quanto a violência sofrida durante o período era ver o silêncio dos vizinhos, que pareciam tão amigos e próximos e depois ignoraram o que acontecia ou estava para acontecer.
Dos israelenses e dos judeus do mundo inteiro espero manifestações cada vez maiores e mais contundentes em relação aos crimes de guerra cometidos por Israel. Ainda que Israel mostre caminhões com ajuda humanitária, com toneladas de alimentos, parados, sem conseguir chegar a Gaza, cabe aos israelenses conseguir evitar que a população palestina morra de fome.
Ainda recordo com emoção quando, em 1982, cerca de 400 mil israelenses, na época 10% da população do país, foram às ruas de Tel Aviv protestar contra o que aconteceu em Sabra e Chatila e exigir a queda do governo. Ainda que o massacre tenha sido cometido pelos falangistas cristãos (milícia maronita) cabia ao exército de Israel assegurar a proteção da população que estava sobre sua guarda.
Ao mesmo tempo, é espantoso ver o silêncio de amigos humanistas, de esquerda, que se omitem diante de infâmias ditas ou praticadas por quem odeia Israel e, mesmo que digam “sionismo”, os judeus.
Nas últimas semanas, crianças israelenses foram expulsas de um avião por estarem cantando em hebraico; turistas israelenses não puderam desembarcar de um navio na Grécia; milhares de pessoas protestaram durante o Eurovision 2025 contra a cantora israelense Yuval Raphael, ela própria sobrevivente do ataque do Hamas ao Festival Nova Música, no 7 de outubro; jornalistas citaram várias vezes o famigerado e falso “Protocolos dos Sábios de Sion” e ressuscitaram a ladainha de que os judeus dominam as finanças, a imprensa, o mundo; doentes, lunáticos, negacionistas da história ignoram a milenar presença judaica na região, constatada não apenas nos livros religiosos, mas em diversas descobertas arqueológicas e chegam ao disparate de dizer que Jesus – o “Rei dos Judeus”, um rabino – era palestino; pessoas cruéis, obcecadas pela ideologia, dizem sem pudor ou constrangimento que o que os judeus, os israelenses, os sionistas…estão fazendo com os palestinos é pior do que os nazistas fizeram com os judeus; e o presidente Lula, depois de inventar fatos e números (como se os verdadeiros já não fossem graves o suficiente) agora retirou o Brasil da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA).
O silêncio da quase totalidade dos meus amigos e vizinhos do campo que eu julgava humanista é ensurdecedor.
Nós judeus estamos tristes, praticamente sozinhos e indignados. Mas não acovardados. Ao contrário do que disse Lula, na história judaica não há lugar para vitimismo e sim para a resiliência.
Tanto os nazistas quando os terroristas do Hamas sabiam ao cometer suas atrocidades e ao dizer mil vezes mentiras ou meias verdades que elas se tornariam verdades inteiras para quem, sabendo ou não, assumindo ou não, traz dentro de si um preconceito milenar. Como já disse em outra coluna, é tão fácil falar qualquer coisa quando se pretende atingir Israel e os judeus! Ainda mais quando há a desculpa ou disfarce do antissionismo. “Como fogo em palheiro, a acusação se espalha rapidamente, replicada pelo gado esquerdista, que se julga tão diferente dos bolsonaristas e de toda a gente da extrema direita.”
Que você, leitor, leitora, não seja conivente com o antissemitismo que se espalha por todo o mundo.
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Boa apreciação abrangente, isenta, holística e pessoal ao mesmo tempo se é que isto é possível.
A questão do transtorno de uma mente acossada representa de forma emblemática o quanto podemos ser perturbados pela nossa mente sem que haja dado de realidade ou cognição.
E o melhor de tudo: nem falou no Grêmio, até porque no momento não há nada pra ser dito…
Sinto que, nos dias de hoje, assim como vc ficou assustado com o título da msg, acredito que muitas pessoas sentem medo de ser acuadas por expressar suas opiniões, por mais convicção que tenham de seus valores. Falo isso, por experiência própria.
Acredito que um dos problemas é a falta de filtro de muitas pessoas, que preferem aparecer nas redes sociais como fxodxnas, invés de levadas pelo coração, compaixão e empatia.