O que falta de verdade a Lula?
Rompi relações com muitas pessoas que chamam o presidente do país de “Nove Dedos”…
por Airton Gontow
Existem frases que definem as pessoas.
Quando são ditas por elas.
E nem precisa ser uma frase.
Às vezes basta uma só palavra. Ou uma expressão.
Sempre reconheci o pensamento e até o caráter de alguém ao receber (e ainda recebo) alguma mensagem que falava sobre o “Nove Dedos”.
No começo, até tentava argumentar:
– Tu podes ter a opinião política que quiseres, mas nesses tempos em que buscamos a inclusão e a diversidade, é indecente e absurdo falares em tom jocoso sobre a característica física de alguém.
É obviamente difícil dialogar com a parede. Geralmente a mesma pessoa contra-argumentava com sua absoluta e imbecil certeza de que o ex-metalúrgico, hoje presidente do país, se automutilou, provocou o próprio acidente de trabalho, para não precisar mais trabalhar.
É uma acusação difamatória, fascista, baseada apenas em especulações, boatos e preconceito arraigado contra a classe trabalhadora. Revela, ainda, completa falta de conhecimento e sensibilidade social. De compreensão do que é realidade brasileira.
Acidente de trabalho não é uma exceção na vida de quem trabalha para construir o país!
Somente no ano passado, foram registrados no Brasil 724.228 acidentes de trabalho, de acordo com os dados fornecidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Ainda em 2024, aconteceram no País 4.600 amputações provocadas por acidentes de trabalho.
O acidente em que Lula perdeu o dedo mindinho da mão esquerda ocorreu em 1964, por volta das 2h da madrugada, quando o então torneiro mecânico da Metalúrgica Independência, na Vila Carioca, em São Paulo, tentava consertar uma prensa mecânica que havia emperrado. O equipamento se fechou de repente e esmagou o dedo do jovem de 19 anos.
Como acontece tantas vezes com quem trabalha em nosso país, o paciente precisou enfrentar o descaso e esperou uma eternidade para ser atendido no hospital. Por volta das 6h da manhã – quatro horas depois! – foi visto pelo médico, que teria, segundo Lula, feito o atendimento sem o devido cuidado, e optou pela amputação.
Afastei-me desses amigos e, também, de parentes, felizmente poucos, que ultrapassaram a fronteira do aceitável ao utilizar um linguajar que nada tem de ingênuo. Frases e pensamentos do gênero levaram ao rompimento total de relações. Não quero contato com esse tipo de gente!
As palavras têm força. É inadmissível alguém se referir dessa forma e acusar, sem provas, o presidente do nosso país.
Lembrei-me disso há poucos dias ao ouvir estupefato, Lula manifestar sua estranheza pelo fato de um país tão bem preparado quanto Israel ter sido apanhado de surpresa no 7 de outubro pelos terroristas do Hamas.
– Agora o que ninguém responde é como a Inteligência de Israel permitiu que alguém de Asa Delta invadisse Tel Aviv. Sinceramente tem coisas que meus anos de escolaridade não me permitem esconder.
Dizendo sem afirmar, o presidente insinuou levianamente que o governo e o exército israelense sabiam do ataque que matou em poucas horas 1.200 pessoas, a ampla maioria civis, e sequestrou outras 251, no maior pogrom feito contra judeus desde a Segunda Guerra Mundial.
Não vou aqui me ater a absurdos como Lula dizer que o ataque, ocorrido ao sul do País, quase na fronteira com Gaza, aconteceu em Tel Aviv, na região central de Israel. O fato é que nunca pesaram contra alguém tão inteligente quanto o mandatário do País os seus poucos anos de escolaridade. O que pesa para sua dúvida são os muitos anos de um preconceito milenar, que ele – assim como tantos e tantos “humanistas”, não percebem que têm, já acreditam piamente – como fanáticos religiosos – que representam sempre o Bem; e que todo o resto representa o Mal.
A “insinuação” de Lula é, além de leviana, covarde.
As palavras têm força. É inadmissível o presidente do Brasil se referir dessa forma e acusar, sem provas, um país de ter sido convivente em um evento tão grave contra sua própria população.
É tão fácil falar qualquer coisa quando se pretende atingir Israel e os judeus! Ainda mais quando há a desculpa ou disfarce do antissionismo.
Como fogo em palheiro, a acusação se espalha rapidamente, replicada pelo gado esquerdista, que se julga tão diferente dos bolsonaristas e de toda a gente da extrema direita.
Dias atrás um “amigo” escreveu para mim (vou ainda publicar o nosso “debate”), que “agentes israelenses devem ter se infiltrado no comando do Hamas para causar o ataque de 7 de outubro”. Só faltou ele, intelectual de esquerda e sujeito que se julga humanista e desprovido de preconceitos, dizer que Yahya Sinwar e Hassan Nasrallah, esse último do Hezbollah, eram agentes do Sionismo Internacional!
Repare, leitora, leitor, que Lula em momento algum teve a audácia de questionar diante das câmeras, para o Brasil e o mundo, o atentado cometido pela Al-Qaeda em 11 de setembro de 2001, que matou 2.977 pessoas.
– Agora o que ninguém responde é como a Inteligência dos Estados Unidos permitiu que invadissem Los Angeles e Chicago em aviões comerciais. Sinceramente tem coisas que meus anos de escolaridade não me permitem entender.
Não dá para imaginar, né?
É fácil lançar suspeitas sobre o “Estado Judeu”.
Lula tem ultrapassado todos os limites da decência e de razoabilidade quando o assunto é Israel.
Poucos dias após o ataque do Hamas, financiado, assim como o Hezbollah e o Houthis, pelo governo iraniano – e ainda no início da violenta resposta israelense – o presidente do Brasil utilizou o termo genocídio, criado originalmente, em 1944, por Raphael Lemkin em seu livro Axis Rule in Occupied Europe (“A Regra do Eixo na Europa Ocupada” ou “O Domínio do Eixo na Europa Ocupada”) para descrever as atrocidades – a busca do extermínio de um povo – pelos nazistas.
Depois, em fevereiro de 2024, Lula fez comparações diretas com o Holocausto.
– O que está acontecendo agora na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar judeus.
Na época, o Museu do Holocausto dos Estados Unidos emitiu um comunicado, afirmando que “utilizar o Holocausto como uma arma discursiva é sempre errado, especialmente quando se trata de um chefe de estado”. E acrescentou: “Foi exatamente isso que o presidente brasileiro Lula fez ao promover uma afirmação falsa e antissemita. Isso é ultrajante e deve ser condenado”.
O historiador Avraham Milgram, que por décadas trabalhou no Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Jerusalém, deixou claro que considerava legítimo que fossem feitas críticas à política do governo israelense, mas que a comparação feita pelo mandatário brasileiro era inadequada do ponto de vista histórico. “A declaração não foi respaldada nem mesmo por líderes de países árabes, que criticam Israel, mas jamais compararam o país à Alemanha Nazista”.
A escolha do Holocausto para nomear a tragédia vivida pelo povo palestino é ainda mais perversa do que a feita por aqueles que negam que o extermínio aconteceu ou afirmam que os números são aumentados pelo judaísmo (sionismo) internacional. Se os judeus fazem o mesmo que seus algozes, a Europa pode se eximir de sua culpa pelo nazismo e por séculos de perseguições como na Inquisição e nos pogroms. Se os judeus fazem o mesmo que os nazistas, toda e qualquer violência palestina é legítima. O discurso de que o Israel deve ser varrido do mapa é libertador e “do Bem|.
Ainda no início da violenta resposta israelense, Lula disse que desde a Segunda Guerra Mundial não aconteciam números assim.
A afirmação não corresponde à realidade.
Os números das tragédias no mundo são terríveis e envergonham a espécie humana. Segundo a Syrian Observatory for Human Rights (“Observatório Sírio de Direitos Humanos”), entre 580 mil e 655 mil pessoas morreram entre 2011 e 2025, na guerra civil síria. A ONU estima o número em 500 mil, grande parte, mulheres e crianças. Além disso, se calcula que entre cinco e sete milhões de pessoas que foram para o exílio e outras sete milhões teriam se deslocado de suas casas para outras regiões do país. Nos países da antiga Iugoslávia, fala-se em 140 mil mortes. Somente na Bósnia, teriam sido em torno de 100 mil. Na guerra entre Irã e Iraque, nos anos 80, foram cerca de um milhão de mortos.
No Iêmen e Sudão, quase ignorados pelo público e mídia da maioria dos países, a fome e as mortes revelam o horror diário. Os números são imprecisos, mas fala-se entre 150 mil e 377 mil mortos no Iêmen e entre 150 mil e 220 mil no Sudão. Em Gaza, segundo o Ministério da Saúde, controlado pelo Hamas, morreram 54 mil, mais da metade civis.
Uma única morte já seria terrível! Imagine, leitor, leitora, se qualquer um dos mortos em Gaza fosse seu filho, filha, irmão, pai, mãe, esposa, marido, avô, avó…
Imagine também se qualquer um dos 1.200 mortos em Israel ou dos 251 sequestrados pelo Hamas (alguns deles presos há um ano e meio nos túneis) fosse seu filho, filha, irmão, pai, mãe, esposa, marido, avô, avó…
Como diz o Talmud, um dos pilares da cultura e da religião judaica, uma vida humana vale a humanidade. O conceito vem de uma das explicações dos sábios no debate sobre por que Deus fez apenas um Adão e uma Eva, ao invés de muitas pessoas. “É que se um dos dois morresse antes de ter filhos, a humanidade não prosseguiria. Então é para o ser humano lembrar sempre que uma única vida vale a humanidade inteira. Que quando uma única vida humana estiver em perigo, ele deve lutar para salvá-la como se estivesse lutando para salvar toda a humanidade.
Palavras têm que ser usadas com responsabilidade.
Números também.
Em abril do ano passado, na Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Lula disse que 12,3 milhões de crianças foram mortas em Gaza.
– Sobretudo é uma homenagem às 12 milhões e 300 mil crianças que morreram na Faixa de Gaza, em Israel, bombardeadas em uma guerra insana contra a Humanidade – disse o presidente.
Não foi um deslize e sim um ato falho movido pelo desejo, consciente ou não, de demonizar Israel e que repete o Libelo de Sangue, falsa acusação surgida na Idade Média, em diversas partes da Europa, de que os judeus assassinavam crianças cristãs para utilizar seu sangue em rituais religiosos, especialmente no período da Páscoa Judaica, na preparação dos pães ázimos (matzót).
Lula demoniza Israel em diversas ocasiões, afirmando que Israel busca matar mulheres e crianças.
– Nunca vi uma guerra em que a preferência da morte são crianças, mulheres…”
O presidente teria e tem todo o direito de criticar a resposta israelense, que considera desproporcional; de dizer que um estado constituído não pode agir da mesma forma que um grupo terrorista e declarar seu apoio a criação de um estado palestino. Poderia ainda, mas não espero tanto, anunciar ao mundo que o Brasil também exige do Hamas a libertação imediata dos reféns – os que ainda estão vivos e os mortos, para que seus corpos sejam enterrados com dignidade e seus familiares tenham alguma chance de seguir em frente.
Lula poderia criticar duramente a ação israelense, mas também apontar para o Hamas como também responsável por tudo isso, seja pelo ataque do 7 de outubro, seja pelo uso da própria população como escudo humano ao construir suas bases sob hospitais e escolas. Enquanto em Israel há, de acordo com o Ministério da Defesa, 1,5 milhão de bunkers públicos e privados, em Gaza foram construídos entre 500 e 800 km de túneis, nenhum deles para uso da população civil.
Ao inventar fatos e números, ao acusar sem provas, Lula não contribui para a paz, afasta a possibilidade do Brasil se tornar um mediador confiável e só reforça o sentimento cada vez maior em Israel de que “todos estão contra nós”, o que enfraquece o campo progressista, a busca pela solução por dois estados para dois povos e fortalece a Direita e o radicalismo. Lula desrespeita e envergonha a tradição de equilíbrio da diplomacia brasileira.
Dias atrás, o presidente voltou à sua verborragia chamando de vitimismo a lembrança dos judeus ao Holocausto e os temores de que ele se repita (o Holocausto dizimou 63% da população judaica na Europa, 36% dos judeus no mundo. Em alguns países, como Polônia e Lituânia, 90% foram exterminados).
Imaginemos o antigo presidente, Jair Bolsonaro, dizendo o mesmo para afrodescendentes, índios, homossexuais, pessoas com espectro autista…
– Vamos parar de vitimismo…
O vitimismo de Lula é o Mimimi indecente do Bolsonaro.
Mas a esquerda e os “humanistas” ficam quietos e aceitam tudo, como gado.
Com seu silêncio, piadinhas, charges antissemitas e o dedo rápido para compartilhar fake news favoráveis ao que defendem, a esquerda brasileira repete o modus operandi dos bolsonaristas.
Ainda sonho com um mundo em que as pessoas sejam vigilantes em relação aos absurdos ditos pelos políticos que se encontram no lado oposto ao que defendem, mas que sejam ainda mais críticas e vigilantes em relação ao que dizem e fazem aqueles que elas elegeram.
Esse seria o maior antídoto contra a corrupção e a ditadura.
A esquerda e os humanistas que pouco ou nada sabem sobre o assunto, e negam a 90% dos judeus até mesmo o Lugar de Fala, aplaudem triste e pateticamente as insanidades do presidente em relação a Israel.
Repetem o comportamento de claque e de manada que tanto abominamos na direita.
Quem escrever para mim chamando Lula de nove dedos, continuará a ser advertido e, depois, cancelado.
Mas se escrever:
– Mas tu não achas que o candidato em que você votou está agindo como um antissemita?
Minha resposta será:
– Sim, infelizmente acho.
Pouco me importa quantos dedos tem o presidente do Brasil. Isso não é e nunca seria um limitador para alguém ocupar o principal cargo do país. Mas é lamentável que sempre aponte o dedo acusador para um único lado; que governe cada vez mais como alguém que tem parafusos a menos na cabeça.
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Excelente análise! Parabéns pelo texto e pelo tom adotado, sem cair nas armadilhas dos mimimis
Airton, seu texto é um convite à lucidez em tempos de extremos. Você costura, com coragem e clareza, temas delicados sem perder o senso de justiça nem escorregar na polarização rasa. Parabéns por levantar essa discussão com seriedade, empatia e compromisso com a verdade. Que mais vozes como a sua se façam ouvir.