Sair do quintal: sobre O Mágico de Oz
Preocupado com a deterioração física do acervo cinematográfico, o Arquivo Filmográfico Nacional, uma divisão do British Film Institute, compilou 360 cópias perfeitas de filmes para a história do cinema. Famosos críticos e acadêmicos, cineastas, romancistas e historiadores foram convidados a escrever sobre esses filmes. São impressões pessoais, detalhes da produção e uma filmografia minuciosa, além de notas e bibliografia. O Mágico de Oz é um desses filmes, e o escritor convidado é o escritor indiano, radicalizado na Inglaterra, Salman Rushdie, autor de Versos satânicos (que lhe rendeu uma pena de morte por ser considerado desrespeitoso ao Islã) e o excelente O último suspiro do Mouro.
O Mágico de Oz (RUSHDIE, Salman. O mágico de Oz. Trad. de Rolf Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, 84p), é um livro aparentemente despretensioso. Há, no entanto, em meio aos dados biográficos do escritor uma tinta despreocupadamente ímpia que, a contrapelo do projeto do Arquivo Filmográfico, desfia as imagens e desconstrói o seu apelo pedagógico e redutor. O filme, afirma Rushdie, fez de mim um escritor e, agora, analisando-o, estou sujeitando O Mágico de Oz às “indignidades da câmera lenta, do avanço rápido e do congelamento de imagem”. Além disso, Rushdie aponta para o filme como sua primeira influência literária: “o filme fez de mim um escritor”. Acompanha o texto, o conto “No leilão dos sapatinhos de rubi”, do autor.
A partir duma franca disposição em desfiar a trama do filme, o escritor ressalta uma das raras ocasiões em que, segundo ele, o cinema melhorou um bom livro. Rushdie chama a atenção para sutilezas perversas do filme: a inadequabilidade dos adultos, por exemplo, e como a fraqueza deles força as crianças a tomarem as rédeas de seus próprios destinos; a contestação da sentença: “there’s no place like home” (Não há lugar como o nosso lar) é continuamente reiterada; e a revelação das alegrias de ir embora, de deixar o cinza e ingressar na cor, de levar uma nova vida no “lugar onde não existe problemas”. O lar, apresentado no filme, é um lugar depressivo no qual, segundo Rushdie, até onde a vista alcança, tudo é cinzento e se contrapõe à cor que inunda a tela do mundo de Oz: o amarelo da Estrada de Tijolos, o vermelho do Campo de Papoulas, o verde da Cidade Esmeralda e da pele da feiticeira.
O lar e a segurança são representados por uma simplicidade geométrica, ao passo que perigo e maldade são invariavelmente retorcidos, irregulares e deformados. O escritor destaca ainda uma animosidade do filme contra tudo o que é emaranhado, torto e misterioso. Assim, a pequena Dorothy quando ingressa no retorcido e colorido mundo de Oz não tem um teto sobre sua cabeça, configurando o desabrigo e o desalojamento do sujeito. É difícil para um migrante como eu, diz Rushdie, não ver nesse destino deslocado uma parábola da condição do migrante.
Daí a indignação de Rushdie diante da lição aprendida por Dorothy: Se alguma vez sair novamente à procura de meus desejos, não os procurarei além do meu próprio quintal. “Devemos acreditar que Dorothy nada mais aprendeu em sua viagem do que ser esta, em primeiro lugar, desnecessária? Devemos aceitar que ela agora se conforme com as limitações de sua vida doméstica, e concorde que as coisas que ela não tem ali também não representam nenhuma perda para ela?”. Desculpem-me mas isto é o inferno. É preciso sair do quintal.
Sobre Salman Rushdie: http://www.salman-rushdie.com/
Sobre o filme: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-29738/
Onde comprar o livro: http://www.companhiadasletras.com.br/busca.php
Onde comprar o filme: http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/652262/o-magico-de-oz-dvd4
*Lisley Nascimento é professora de Literatura na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
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