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Três Heróis: crônica em homenagem aos domingos de Gre-Nal e Dia dos Pais

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por Airton Gontow

 

Nunca tive qualquer empatia por esses super-heróis dos desenhos – fortes, destemidos e invencíveis. Ao contrário, lembro-me de que desde a minha infância minha mente e meu coração só tinham espaço para os personagens reais que habitam ou não o cotidiano da gente.

Herói era meu pai, Isaías Gontow. Juntos fomos a todos os jogos do Grêmio no Rio Grande do Sul durante sete anos. Quando a gente voltava pela estrada, ia em uma espécie de comboio, com vários carros de torcedores e, no meio de nós, o ônibus dos jogadores e o ônibus da TV Gaúcha trazendo o vídeo-taipe do jogo, já que naquele tempo o “via-satélite” mal existia!!!! Fazia geralmente muito frio e quando entrávamos na cidade, o ônibus da Gaúcha seguia em direção ao morro Santa Tereza e nosso carro percorria a neblina porto-alegrense até o porto seguro de nosso apartamento lá na av. Protásio Alves. E aí eu ficava assistindo ao jogo do Grêmio que a TV Gaúcha (Canal 12) estava começando a exibir….aquele mesmo que eu havia visto quatro horas antes.

Meu pai ia até meu quarto, fazia minha cama e depois se deitava, com aquele corpo grande de pai da gente, e derrotava a frieza dos lençóis e, depois, eu o via surgindo, cada vez maior, até que me pegava no colo e me conduzia pelo corredor até o meu quarto e me deitava naquela cama mágica e já aquecida pelo calor do pai. Talvez por isso, mesmo quando meu pai fez um monte de bobagens na vida e a vida fez graça de mau humorista com a gente, eu não consegui nunca deixar meu coração amargurado e a alma sem esperanças, porque eu sabia que ele era meu herói e os heróis não são necessariamente vencedores, mas são aqueles que sempre acalentam a alma da gente!!!!

Isaías Gontow, com os filhos Carlos (‘à esq.) e Airton.

Meu herói era também o colorado seu Benjamin. Vivíamos todos no pequeno e agitado edifício Jardim Emília, com seus quatro andares e dez apartamentos. Nós morávamos no térreo e tínhamos o privilégio de ter o único quintal grande do prédio, o que fazia do lugar o campinho ou cancha das peladas e sonhos. Todos os outros apartamentos eram de amigos de infância de meu pai, amigos que casaram na mesma época e compraram juntos o primeiro imóvel.

Nós, as crianças, estudávamos na mesma escola. Esqueci de dizer , mas conto agora, que no Jardim Emília havia dois banheiros em cada apartamento – um grande, o outro pequeno – e que entre eles existia uma espécie de vão, que deixava naquela área do prédio um eco estranho. E conto também que no segundo andar vivia a família do seu Benjamim: a esposa, Dona Beatriz; e as filhas Eliane e a Rosane. Benjamin e Beatriz cantavam na Ópera de Porto Alegre, a OSPA.  E a Eliane, que era minha melhor amiga, cantava na “OSPinha”.

Como todos acordávamos na mesma hora, naquele prédio ninguém usava despertador no meio da semana, porque bem cedinho o seu Benjamim entrava no banheiro grande do segundo  andar e cantava: – “Granada! Tierra soñada…”. E aquele som da voz poderosa e melódica  do seu Benjamim passava para o vão do prédio, espalhava-se por todos os andares, invadia os apartamentos, passar por baixo das portas e penetrava nos nossos quartos para nos tocar suavemente e nos despertar, como se fossem raios de sol da manhã.

Heróis, Heróis, Heróis; sim, tenho meus heróis! Alguns da vida cotidiana. Outros como Eurico Lara, grande nome da história do Grêmio! De Eurico Lara, eu aprendi a história ao lado de seu túmulo, no cemitério São Miguel e Almas, em Porto Alegre, segurando na mão de meu pai, como acontece com muitos e muitos gremistas. Era um goleiro fantástico e gremista apaixonado (como todos os gremistas devem ser). É o único jogador da centenária história gremista citado por Lupicínio Rodrigues. Sim, o autor de “Nervos de Aço” e “Felicidade foi se embora” fez o belo o hino do Grêmio – “Até a pé nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver”.

Mas eu falava sobre Eurico Lara, que era apaixonado e gremista e, veja só, estava no quarto de um hospital, com turberculose e doente do coração, no dia da final do campeonato gaúcho, contra o inimigo Internacional, no chamado clássico Gre-Nal. Lara fugiu do hospital para assistir ao jogo. Um empate daria o título ao Grêmio, que estava com um ponto a mais na competição. Mas, faltando três minutos, o juiz marcou um pênalti para o Inter. A torcida gremista, em grande maioria, ficou em silêncio, com medo da catástrofe próxima. Foi neste momento que Lara disse para o homem que cuidava do portão junto ao gramado: “abre”. E quando entrou em campo foi tirando a camisa, as calças…estava de uniforme por baixo e, pasme, de chuteiras. O estádio explodiu de espanto e alegria, mas logo depois, aconteceu um silêncio absoluto, que até hoje impressiona a todos os que assistiram à cena. Era como se não houvesse vozes, pássaros…vento no mundo.

Eurico Lara: uma lenda na história gremista

O atacante do Inter ajeitou a bola. Parecia um touro, enquanto se preparava para iniciar a curta corrida em direção à bola. O chute saiu forte, alto, no canto esquerdo. Mas Lara, meu herói Eurico Lara (cantado por Lupicínio como “o craque imortal”) saltou como um gato e encaixou a bola no peito e com ela continuou agarrado quando caiu no chão. A torcida entrou em delírio. Os jogadores se aproximaram para reverenciar aquela lenda do futebol. No estádio, uma chuva de chapéus, como nunca mais foi vista, nem mesmo nas comemorações pela vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial. Lara continuava agarrado com a bola no chão. Sim, era sua, não queria soltá-la. Os jogadores foram se afastando. A torcida de pé, em silêncio, compreendeu o que acabara de acontecer. Lara estava morto. Com a bola grudada naquele imenso peito gremista. No gramado, milhares e milhares de chapéus eram como flores homenageando aquele deus do futebol.

Na verdade, a primeira história, sobre meu pai, é verídica, mas esta segunda não aconteceu exatamente assim. No dia 22 de setembro de 1935, contrariando as recomendações médicas para que não atuasse mais, Lara entrou em campo para o jogo decisivo – um Gre-Nal! –  do campeonato da cidade, naquele ano chamado de “Campeonato Farroupilha”, por ser o período das comemorações do centenário da Revolução dos gaúchos. O Grêmio precisava vencer para conquistar o título. Foi uma das maiores atuações de sua vida, decisiva para a vitória gremista por 2 a 0. Nunca mais atuou. Faleceu em 6 de novembro, 45 dias após o Gre-Nal – e dizem os médicos que a morte foi apressada pelos meses em que, mesmo doente, jogou pelo Grêmio.

Mas vou contar ao meu filho exatamente como o meu pai me contou: segurando em sua mãozinha de gremista, ao lado do túmulo do inesquecível Eurico Lara, aquele que morreu defendendo um pênalti, com tuberculose e doente do coração, dando o título de campeão ao Grêmio….

 

*Airton Gontow é jornalista e cronista

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