Um Tempo de Dor e de Terror
Nesse brilhante artigo, a psicanalista Katia Wagner Radke mostra a inadequação do uso da expressão “Novo Normal” que, para ela, traz a banalização da dor e um certo borramento da percepção da realidade. “Meu grande temor é que a ideia de um novo normal possa induzir a uma sensação de que estamos diante, apenas, de um tempo próximo ao normal”, afirma
Tenho pensado muito sobre o porquê de tantas referências a este momento tão difícil e dramático como o “novo normal”.
Com certeza, este tempo não guarda semelhança alguma com o que convencionamos como “normal”.
Não há nada de normal em estarmos com escolas e comércio fechados, sem festas, sem abraços… O isolamento social está na contramão de nosso instinto gregário.
Acredito, então, que esta forma de nos referirmos a este tempo tão diferente – tempo de um enorme luto comunitário – possivelmente, esteja associada a uma grande dificuldade de lidarmos com uma dor arrebatadora e com um impactante golpe à nossa onipotência, ao nosso narcisismo.
Nossa “crença” no previsível e no ponderável está sendo frontalmente abalada.
Assim, penso que lançamos mão de um modo defensivo que busca “transformar” algo tão trágico e assustador em “um novo normal”. Seria uma desmentida do impacto causado pela ameaça de morte que nos ronda? Seria uma tentativa de nos protegermos da vivência de desamparo gerada por um governo desgovernado que, para além de nos expor à ameaça, a desmente, encorajando a população a ir para as ruas sem cuidados?
Talvez. Sinto como se a “acefalia” do Poder Executivo Federal nos remetesse à vivência do domínio do mortífero, da pulsão de morte desenfreada.
Penso que a Psicanálise pode nos auxiliar na promoção da transformação desta vivência terrorífica em pensamento. Antes de mais nada,precisamos ser capazes de “ver” esta realidade sem atacar a nossa percepção. Estamos experenciando uma vivência de orfandade que, de certo modo, remete-nos a experiências de desespero.
É preciso que possamos entrar em contato com a fragilidade inerente à ameaça trazida pela pandemia e pelo desamparo governamental. Ao meu ver, a idéia implícita no conceito de “um novo normal” é a de produzir uma falsa verdade, um ataque à nossa percepção que acaba por gerar confusão entre o caos e o “normal”.
Como assim, pergunto-me, como pode a morte de mais de cem mil brasileiros pela Covid-19 ser equacionada,de modo tão banal, com um “novo normal”?
Vejo-me pensando na idéia de um simulacro que traz consigo a banalização da dor e um certo borramento da percepção da realidade.
Meu grande temor é que a ideia de um “novo normal” possa induzir a uma sensação de que estamos diante, apenas, de um tempo próximo ao normal.
Neste momento, lembro-me da poesia de Clarice Lispector: “não suporto mais nenhuma morte de ninguém que me é caro. Meu mundo é feito de pessoas que são as minhas – e eu não posso perdê-las sem me perder”.
Clarice, eu também não suporto mais ver tantas pessoas morrendo e tantas famílias chorando. Até quando?
Precisamos falar sobre esta orfandade que sentimos e sobre o pavor que temos vivido diante do caos produzido por cisões e suas desmentidas!
Inquieta-me pensar sobre como se dará a subjetivação das novas gerações, após serem arduamente marcadas por este trauma comunitário.
Reporto-me, então, a Freud em “Luto e Melancolia” (1915), onde o primeiro relaciona-se ao confronto com uma perda real, podendo entrar em uma sequência elaborativa. Já a melancolia relaciona-se não necessariamente a uma perda real, mas a alguma decepção vinda de um objeto idealizado, caracterizando uma base narcísica e de grande ambivalência em relação “à perda deste objeto ideal”.
Pois bem, este quadro leva a um caminho diferente da elaboração do luto. Na melancolia, observa-se que o investimento libidinal não é deslocado para outro objeto, mas sim substituído por uma identificação, ficando o sujeito povoado por rancores e ressentimentos que o mantém preso ao passado. Assistimos, assim, a coagulação do tempo, onde o presente é vivido no passado e o futuro impedido de ser imaginado sem que o pano de fundo seja o pretérito!
Neste contexto, é que gostaria de focar, novamente, a minha preocupação: a banalização de perdas reais pode impedir ou obstaculizar o processo elaborativo do luto, conduzindo-nos, quem sabe, a uma “melancolia comunitária”.
Oxalá que a psicanálise possa ser ouvida. Estamos, sim, sofrendo. Somos, sim, uma nação enlutada. Só assim poderemos nos libertar de alguma coagulação temporal que nos impeça de viver um antes, um durante e um depois da pandemia.
*Katia Wagner Radke é psicanalista da SPPA (Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre), especialista em Infância e Adolescência.
Esse artigo foi originalmente publicado no “Observatório Psicanalítico”, nos “Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo”.
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Excelente reflexão. Ao ler o artigo, veio-me à cabeça aquela sensação de quando perdemos alguém querido, de a pessoa não morreu, aquele “não cair a ficha”… Uma defesa psíquica. E um ponto foi caro: esse desgoverno, essa má liderança que nos leva a uma pulsão de morte..